Numa viagem à Toscana com os meus dois filhos adolescentes, no meio do
emaranhado de ruas de Siena, subitamente o meu telemóvel ficou sem
bateria. A Marta e o Ricardo II não conseguiam esconder a aflição, ao
perceberem que estávamos sem GPS.
Naquela noite, os meus filhos devem ter concluído que tínhamos ficado
perdidos para todo o sempre, ou até sermos encontrados por uma equipa
de salvamento que nos levaria de volta a casa com sofisticado
equipamento de georreferenciação.
Quando eu comecei a viajar de mochila às costas, de Interail, pela
Europa, nos anos 80, os mapas em papel eram o meu “kit de
sobrevivência”. Para as novas gerações de viajantes, o sentido de
orientação e de localização geográfica organiza-se em aplicações de
telemóveis inteligentes.
A primeira vez que fui a Siena, muito jovem, cheguei arrastado pelas
páginas do livro “A room with a view”, de E.M. Forster, hipnotizado
pelas imagens das planícies toscanas, de vinhas sem fim, que tinham
crescido na minha imaginação de leitor. Tive de procurar uma das
entradas na cidade antiga num velho mapa emprestado pelo meu pai e que
estava tão desatualizado que muitas das estradas que fui encontrando
não existiam ainda nos contornos das suas páginas amarelecidas. O
hotel onde fiquei em Siena foi descoberto numa edição de um jornal
regional, quando cheguei a Florença, num anúncio de meia página,
prometendo quartos asseados com vista para a praça central da cidade,
muito bem ilustrado com um desenho de telhados de casas medievais
encavalitadas. A reserva do quarto foi feita numa cabina telefónica
que procurei debaixo de calor intenso, quando deixava Florença,
desenterrando moedas de milhares de liras nos bolso e tentando
decifrar o italiano debaixo da pronúncia cerrada do rececionista.
A primeira vez que os meus filhos pediram para ir a Siena aconteceu
depois de terem descoberto o Palio de Siena, nas redes sociais
digitais, que partilhavam um ‘site’ que divulga em tempo real a
velocidade dos cavalos na célebre corrida anual na Piazza del Campo.
Ficámos num hotel nos arredores da cidade aconselhado pelo
Tripadvisor, onde eles selecionaram a categoria de hotéis amigos de
famílias com jovens, depois de terem filtrado as opções pelo tipo de
comentários que iam lendo. A viagem desde Roma foi monitorizada por
uma aplicação de mapa eletrónico, que ia atualizando a hora de chegada
e que mostrava as várias opções de rotas e avisava sobre eventuais
engarrafamentos de trânsito. E todas as fotografias do percurso foram
partilhadas para os amigos por Instagram.
A experiência de viajar mudou com o mundo digital. Hoje, nenhum
destino é já exótico, porque antes de o visitarmos podemos conhecê-lo
nas imagens do Google Street. As câmaras fotográficas mostram-nos os
destinos em vários ângulos e perde-se a surpresa de um local que
apenas tínhamos imaginado em sonhos.
Quando visitei pela primeira vez Los Angeles, nos anos 90, marquei o
hotel numa agência de viagens em Nova Iorque, cujo funcionário
diligentemente escreveu a morada num envelope com o ‘voucher’ para a
estada. A referência parecia fácil: Wilshire Boulevard, umas das ruas
de referência da cidade, facilmente detetável no mapa que me guiaria.
E uns minutos depois de ter saído do parque de estacionamento dos
‘rent-a-cars’ do aeroporto de Los Angeles, esse mesmo mapa revelava-me
que deveria estar no local que procurava. Ingenuamente, logo que
avistei uma placa anunciando Wilshire Boulevard, estacionei o carro,
preparado para procurar o hotel, a pé. Na verdade, estava na rua
certa. Mas o hotel estava a 15 quilómetros de distância, porque
Wilshire Boulevard estende-se por mais de 25 quilómetros ao longo da
cidade. E, afinal, as palmeiras frondosas no jardim do hotel, que eu
tinha visto em imagens num escritório escuro de Nova Iorque, eram
apenas um arbustos raquíticos, escurecidos pelos tubos de escape dos
automóveis que enchiam de barulho os quartos dos clientes.
Este erro básico de avaliação nunca aconteceria na era digital. O
hotel teria sido escolhido nos fóruns de discussão, onde os
utilizadores deixam os seus comentários horas depois de fazer o
‘check-out’. As imagens dos quartos seriam colocadas pelos clientes,
mostrando todos os pormenores (incluindo a humidade nas paredes, se
existir). A reserva seria feita depois de consultados vários portais,
comparando preços e modos de pagamento. E a morada do hotel seria
enviada por mail, para ser georreferenciada pelo GPS que nos levaria
até ao exato local da sua entrada.
No paradigma da individualização comunicativa, a viagem passou a ser
uma experiência cada vez mais pessoal e intransmissível. As escolhas
de destinos, modos de transporte, hospedagem, lugares de visita podem
ser formatadas de maneira cada vez mais singular, respondendo às
expetativas particulares de cada um.
Se tudo correr bem, apenas ficarão os relatos históricos das
excursões: uma tipologia de viagem turística massificada, em que se
juntava num mesmo autocarro, ou avião grupos de pessoas tão diferentes
entre si que por vezes era um milagre chegarem todos vivos ao fim do
trajeto. A excursão estava para o turismo como os ‘mass media’ estavam
para a comunicação: o mesmo produto igual para todos, procurando
nivelar a experiência pelo grau mais elementar, de forma a ser aceite
por todos.
Na era do turismo digital, as excursões ficarão para quem não tem
capacidade de escolha, como os média massificados permanecerão para as
audiências mais impreparadas para tomar decisões sobre o que
pretendem. Provavelmente, o turismo terá o seu “digital divide” – a
cisão que dividirá as sociedades entre os info-ricos e os info-pobres,
entre os que saberão usar as novas ferramentas para obter o que
realmente lhes interessa e os que se limitarão a permitir que alguém
decida por eles os museus a visitar.
Na minha mais recente visita ao Louvre, em Paris, depois de lá ter
estado uma dezena de vezes, descobri um museu que parecia nunca ter
conhecido. Isto, porque, na semana anterior, descarregara no meu
‘tablet’ uma aplicação que mostrava obras do Louvre que geralmente
passam despercebidas aos olhos do visitante. Nessa aplicação, existem
imagens tridimensionais e manipuláveis, permitindo conhecer a parte de
trás dos quadros, onde existem inscrições surpreendentes. Para cada
sala do museu, há comentários de especialistas, que contam histórias
sobre as peças em exibição. E a visita virtual permite, finalmente,
descobrir o caminho mais rápido entre cada setor do Louvre, os
melhores horários para os visitar e, até, a posição dos WC, no caso de
alguma aflição.
A certa altura da minha nova visita ao museu, no meio da confusão
provocada pelo nervosismo de um numeroso grupo de turistas na busca do
quadro da Mona Lisa, dei por mim a suspirar pelo momento em que, na
tranquilidade do meu quarto, tinha conhecido aquelas mesmas obras. De
que, ainda por cima, nem sequer me podia aproximar, muito menos
virá-las do avesso para olhar as inscrições na parte de trás da tela…
Mas, quando me aproximei do quadro “La belle ferronnière”, num momento
de maior sossego no museu, observando os golpes de pincel do pintor
(cuja identidade ninguém conhece), a delicadeza dos traços nos lábios
da alegada amante de Francisco I, senti que nada substitui a
experiência de estar nos sítios, de viajar como sempre se viajou:
sentindo os lugares como se fosse sempre a primeira vez.*
*Este texto foi divulgado previamente na revista Turismo’15
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